quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Meias

Meias verdades
Meias vontades
Meias saudades

Viver pela metade é ilusão 
Tire suas meias
Ponha o pé no chão

Augusto Barros

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Choro do Pacífico

De todas as coisas que sempre gostei de fazer,
de todas as coisas que eu sempre gostei de ouvir,
de todas minhas idas e vindas,
nada restou?

Sobrou o pó de minh'alma,
pedaços de papel rasgado,
uma vida incompleta,
prazeres insaciáveis.

Agora sou aquilo que sempre temi
uma vida por aí;
Um pedaço de corpo sobrevivendo
sem mais nem menos.

Sou as entrelinhas nunca lidas,
o pote quase vazio esquecido na prateleira,
sou o rascunho.

Das rimas mal feitas
das dores sem feridas
dos oceanos infinitos


Do teu mar, olhar.

Resíduo

De tudo ficou um pouco 

Do meu medo. Do teu asco. 
Dos gritos gagos. Da rosa 
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz 
captada no chapéu. 
Nos olhos do rufião 
de ternura ficou um pouco 
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó 
de que teu branco sapato 
se cobriu. Ficaram poucas 
roupas, poucos véus rotos 
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
 
Da ponte bombardeada, 
de duas folhas de grama, 
do maço 
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
 
Fica um pouco de teu queixo 
no queixo de tua filha. 
De teu áspero silêncio 
um pouco ficou, um pouco 
nos muros zangados, 
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo 
no pires de porcelana, 
dragão partido, flor branca, 
ficou um pouco 
de ruga na vossa testa, 
retrato.

Se de tudo fica um pouco, 
mas por que não ficaria 
um pouco de mim? no trem 
que leva ao norte, no barco, 
nos anúncios de jornal, 
um pouco de mim em Londres, 
um pouco de mim algures? 
na consoante? 
no poço?

Um pouco fica oscilando 
na embocadura dos rios 
e os peixes não o evitam, 
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco. 
Não muito: de uma torneira 
pinga esta gota absurda, 
meio sal e meio álcool, 
salta esta perna de rã, 
este vidro de relógio 
partido em mil esperanças, 
este pescoço de cisne, 
este segredo infantil… 
De tudo ficou um pouco: 
de mim; de ti; de Abelardo. 
Cabelo na minha manga, 
de tudo ficou um pouco; 
vento nas orelhas minhas, 
simplório arroto, gemido 
de víscera inconformada, 
e minúsculos artefatos: 
campânula, alvéolo, cápsula 
de revólver… de aspirina. 
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco. 
Oh abre os vidros de loção 
e abafa 
o insuportável mau cheiro da memória.


Mas de tudo, terrível, fica um pouco, 
e sob as ondas ritmadas 
e sob as nuvens e os ventos 
e sob as pontes e sob os túneis 
e sob as labaredas e sob o sarcasmo 
e sob a gosma e sob o vômito 
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido 
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate 
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes 
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros 
e sob os gonzos da família e da classe, 
fica sempre um pouco de tudo. 
Às vezes um botão. Às vezes um rato.


Carlos Drummond de Andrade

Repentina


Durante a vida morremos diversas vezes. Aprendi isso num dos meus inúmeros sepultamentos, enquanto eu enterrava mais um pedaço do meu coração. Não tinha alguém pra me aconchegar num abraço, não havia uma rosa pra eu deixar junto a aquele pedaço condenado e que logo começaria a se deteriorar, não havia nada, não havia ninguém, só eu e minha alma cansada. Tempos depois voltei naquele mesmo lugar, não para deixar uma lembrança, mas para soterrar outra parte do meu ser. Dessa vez eu não estava mais tão solitária, a chuva se juntou a mim e as minhas lágrimas. Todas às vezes subsequentes foram assim, ou eu estava só, ou havia o vento ou quem sabe, a chuva. 
No final das contas, morro um pouco a cada novo baque, e mesmo após tantas mortes continuo morrendo. A única morte que me fará parar de morrer é a que me põe por inteiro embaixo da terra, esta pode estar mais perto do que nunca, ou mais longe, enquanto isso não ocorre, sigo assim, morrendo viva. 

Apregoar - Tumblr

Primeiro Amor

Década de cinquenta, época em que falar é algo estritamente perigoso… Falar por falar? Besteira! Falar de falar? Falta do que fazer. Falar dos outros? Costume. Falar de amor? Pecado!
Ainda assim, havia pessoas que desrespeitavam as leis naturais e espalhavam ideias contraditórias. Certa vez, escutei um homem desesperado soltar blasfêmias sobre o tal amor, vociferava para uma plateia invisível: ‘’Queridos cidadãos, prestem atenção em minhas palavras! Jamais amem! Jamais! Amor não é confiável, ao contrário, ele é traiçoeiro. Pode dar-nos esperança e vida, no entanto, ele não hesita em toma-los de volta… Amor é rosa só de espinhos, formoso para quem vê e doloroso para quem toca.’’
Confesso que o discurso do homem não surtiu efeito em mim, não passei a odiar o desconhecido nem mesmo chamou-me atenção, pareceu-me bastante semelhante aos sermões que costumava receber por conversar alto ou dormir tarde, ambos desinteressantes.
Logo depois de encerrar o discurso, o sujeito saiu tropeçando em seus próprios pés. Recordo que ele andou em minha direção e exclamou baixinho: ‘’criança, enquanto não amar, será feliz.’’
Ainda sem compreender o assunto, cutuquei papai que estava ao lado e perguntei-lhe: ‘’o que é amor?’’ surpreso, respondeu-me com a cara feia: ‘’amor é verbo que não deve ser conjugado por crianças’’, desde então, nunca mais conversei com ele sobre esse tema.
Em três de novembro, passei muito mal e fui embora mais cedo da escola, no dia não havia ninguém em casa, então, fui caminhando até ao domicílio de minha avó; dona Carolina. Ela era uma senhora de sessenta e três anos que não aparentava ter passado dos quarenta, era jovem de alma, transparecia vivacidade em frases brincalhonas e passava o dia sorrindo, eu nunca soube quais eram os motivos de tanta alegria, no entanto, hoje em dia desconfio que era apenas o seu espírito leve marcando presença.
A dor que eu estava sentindo era tão grande que as lágrimas escorreram por todo o caminho, quando finalmente cheguei, percebi os olhos inchados e ainda assim, chorava feito bebê.
Assustada, vovó fez questão de saber que dor era aquela que me enlouquecia e fazia perder o chão, por alguns minutos, ocupei-me admirando os lindos olhos de minha avó que emanavam preocupação. Respirei fundo e comecei: ‘’faz algumas semanas que perdi o controle de meu corpo… Sinto estar doente. Consigo morrer e renascer num único minuto! Não domino os pensamentos, são todos involuntários, o coração acelera sozinho e tenho medo dessa felicidade repentina. Tenho medo de ela ir embora.’’
Quando terminei, dei um leve suspiro e pude sentir o rubor subindo a face. Fiquei encarando aqueles olhos azuis, todo o corpo tremia a espera do veredito final, no entanto, o silêncio foi quebrado da forma mais inesperada possível; uma gargalhada de dona Carolina.
Lembro-me como se fosse hoje, ela colocou as mãos no meu ombro e falou tranquilamente: ‘’Amor queima por dentro, mas não mata. Grita no silêncio, mas não ensurdece. Beija-lhe na alma, mas não casa. Amor é pássaro livre, às vezes vem, mas sempre vai.’’
Quem me dera todo o medo e aflição ter passado, ambos continuavam aqui, dominavam-me por dentro e faziam arruaça até tarde, no entanto, ela tinha razão…
Primeiro amor dá medo, os sentidos misturam-se ao desconhecido, as pernas ficam bambas, a lógica foge e deixa-nos a deriva da emoção. Primeiro amor aterroriza, faz qualquer grandão tremer e ficar mansinho, os sóbrios tornam-se bêbados de emoção e os bêbados caem, eles tropeçam diante da realidade, os vícios mudam e as pessoas também. Primeiro amor não tem conceito nem hora marcada, um dia simplesmente acontece. Lembro que renasci das cinzas, chorei por noites seguidas, senti o inexplicável, voei e pousei ao chão, por fim, simplesmente amei e hoje compreendo o porquê que primeiro amor, a gente nunca esquece.

Taline Kihara