terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Resíduo

De tudo ficou um pouco 

Do meu medo. Do teu asco. 
Dos gritos gagos. Da rosa 
ficou um pouco

Ficou um pouco de luz 
captada no chapéu. 
Nos olhos do rufião 
de ternura ficou um pouco 
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó 
de que teu branco sapato 
se cobriu. Ficaram poucas 
roupas, poucos véus rotos 
pouco, pouco, muito pouco.
Mas de tudo fica um pouco.
 
Da ponte bombardeada, 
de duas folhas de grama, 
do maço 
- vazio - de cigarros, ficou um pouco.
Pois de tudo fica um pouco.
 
Fica um pouco de teu queixo 
no queixo de tua filha. 
De teu áspero silêncio 
um pouco ficou, um pouco 
nos muros zangados, 
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo 
no pires de porcelana, 
dragão partido, flor branca, 
ficou um pouco 
de ruga na vossa testa, 
retrato.

Se de tudo fica um pouco, 
mas por que não ficaria 
um pouco de mim? no trem 
que leva ao norte, no barco, 
nos anúncios de jornal, 
um pouco de mim em Londres, 
um pouco de mim algures? 
na consoante? 
no poço?

Um pouco fica oscilando 
na embocadura dos rios 
e os peixes não o evitam, 
um pouco: não está nos livros.

De tudo fica um pouco. 
Não muito: de uma torneira 
pinga esta gota absurda, 
meio sal e meio álcool, 
salta esta perna de rã, 
este vidro de relógio 
partido em mil esperanças, 
este pescoço de cisne, 
este segredo infantil… 
De tudo ficou um pouco: 
de mim; de ti; de Abelardo. 
Cabelo na minha manga, 
de tudo ficou um pouco; 
vento nas orelhas minhas, 
simplório arroto, gemido 
de víscera inconformada, 
e minúsculos artefatos: 
campânula, alvéolo, cápsula 
de revólver… de aspirina. 
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco. 
Oh abre os vidros de loção 
e abafa 
o insuportável mau cheiro da memória.


Mas de tudo, terrível, fica um pouco, 
e sob as ondas ritmadas 
e sob as nuvens e os ventos 
e sob as pontes e sob os túneis 
e sob as labaredas e sob o sarcasmo 
e sob a gosma e sob o vômito 
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido 
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate 
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes 
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros 
e sob os gonzos da família e da classe, 
fica sempre um pouco de tudo. 
Às vezes um botão. Às vezes um rato.


Carlos Drummond de Andrade

Nenhum comentário:

Postar um comentário