segunda-feira, 13 de maio de 2013

Sorrir é uma lenda antiga

“Percebi que tinha morrido quando a dor já não alcançava minha carne. Não sentia o cansaço nas costas judiadas, nem as feridas se abrindo dentre os calos das mãos, tampouco os latidos distantes me incomodavam na noturna. Eu já havia sido morto noite passada, ao me ver martelando memórias na parede de molduras vazias. Ao tomar vinho não mais sentia o fervor do álcool destilando a pouca fome no meu organismo. Silenciosos eram meus passos e corredores da solidão. O vento batia seco, as cortinas dançavam, as prateleiras tremulavam na parede branca. Mas minha pele não o sentia. Minhas vistas se escureciam na densidade das luzes amareladas. O relógio escancarava as horas que se rastejavam lentas, dando ainda mais ênfase à minha tortura. Não devia ter cantado o choro da nascença. Não devia ter florescido do útero de nenhuma mortal errante. Viver é atar-se nos espinhos venenosos, e o perfume da rosa nunca vale a pena. Não vale o cheiro, não vale a morte. Murchou-se e foi varrida pelo vento da janela aberta. Foi, deixando-me no véu do abandono. A vida, foi se esmigalhando aos poucos e sumindo junto à poeira da poesia. Dobrei os meus joelhos sobre o chão e congelei-me na negridão dum canto quieto. Vi-me no espelho: minha angústia atravessada no reflexo embaçado. A dor tomava minha áurea como o calor toma a areia de um deserto. Os meus olhos se negaram à luz e renderam-se à cegueira. Logo minhas pálpebras eram nimbos chuvosos. Calafrios escalavam minhas costas, e minha vergonha se umedeceu com o sal oceânico de minhas lágrimas. Caí sobre os meus joelhos e desejei que as unhas da noite tragassem em arranhões os meus tantos pecados e ossos cansados. Pude sentir a leveza nos calcanhares e nos ombros, minha alma saíra de meu corpo errôneo. Drapejei-me ofegante no fôlego do escárnio. Zombei da vida ao deixá-la. Nada mudou no mundo. Nada deixou de florir. Abandonei minha necrose estirada no chão e crucifiquei-me nos rasgos e brumas do céu. Sepultei-me entre nuvem e outra, no silêncio mortificado da garoa. Fui meu punhal e chaga. Morri por dentro e por fora, às avessas do penar. O verdadeiro erro foi ter demorado pra aceitar as asas da morte e enfim, sorrir ao voar.”



 Sorrir é uma lenda antiga. 
Annd Yawk

Nenhum comentário:

Postar um comentário